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A indelicada leveza do silêncio

Tema: A indelicada leveza do silêncio

Veículo: Diário da Manhã

Número: 11.369

Página: 26

Caderno: Opinião Pública

Data: 03/12/2018

A escola pragmatista, em seus estudos sobre a comunicação humana, reafirma a impossibilidade de não se comunicar. Mesmo o silêncio comunica, na verve intensa que nós, humanos, temos de tornar comunicação tudo aquilo com o qual nos deparamos, esteja inscrito ou não no contexto comunicacional. Ações e elementos naturais como o vento, as nuvens, a curvatura dos ramos ou mesmo o tipo de vegetação, tudo tem a possibilidade de significar alguma coisa. No lastro humano, febre, pupilas dilatadas, sudorese e mesmo as características anatômicas e fisiológicos das mãos, língua, pés ou todo de todo o corpo podem ser lidas, em processos místicos e científicos, expressando a situação atual ou mesmo do porvir. De fato, não há o que fuja do processo comunicacional.


E se assim o é, o silêncio grita sentidos. Distante da ausência ou da neutralidade, o silêncio não cala, antes exala, resvala e por vezes abala as certezas que, como hastes insustentáveis, titubeiam ao vento, trêmulas. O silêncio é praticado na meditação e em algumas vertentes religiosas, tendo seu voto como uma boa ação para voltar-se a si mesmo, em busca das vozes que constituem nossas subjetividades. Ele é resultado do trauma e da paz, abrangendo, em sentidos, o fosso e o ápice, a tristeza mais profunda, existencial, e a alegria mais intensa, ontológica, quando se perde a palavra e o ar que a faz nascer, e quando são esquecidos o murmúrio e o suspiro.


A fragilidade do silêncio é anedota, ao ser quebrado por qualquer ruído. O silêncio é inspiração, ao ser convertido em versos. É incerteza, ao indicar possibilidades interpretativas, em uma quase personificação do interpretante final. É um consentimento tão fácil quanto incerto, no dito popular. É um estratagema de quem não quer ouvir o outro. É fuga, direito e atrevimento jurídicos. É omissão e assunção. É, ao mesmo tempo, sim e não. O silêncio é sábio e profundamente ignorante. Em todas as suas formas, contudo, é indelicado, por conter em si todas as coisas do mundo, em um titubeio adocicado do veneno incerto, pressentido.


Sua indelicadeza leve contrasta com o peso das palavras, porque ao não ser dito, abre as portas dos sentidos, assumindo qualquer e todas as coisas, em uma torrente inflamada, contraditória e incongruente de palavras não ditas, latência de sentidos possíveis. O silêncio é a gravidez e a gravidade das palavras surdas e mudas, sentidas. É a balança que gangorra.


E antes que me silencie(m), lembro os versos finais de Cecília Meireles, que apresentam o motivo de preferir cantar a se silenciar:


“Sei que canto. E a canção é tudo.

Tem sangue eterno a asa ritmada.

E um dia sei que estarei mudo:

— mais nada.”

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