Coluna 11-03 - Digital como nós pensamos

Digital, como nós pensamos

Tema: Digital, como nós pensamos

Veículo: Diário da Manhã

Número: 11.455

Página: 20

Caderno: Opinião Pública

Data: 11/03/2019

A lógica digital se lastreia na cultura com a facilidade que se vincula ao modus operandi de nosso cérebro, de nosso modo de pensar. Essa lógica, que se baseia no descontínuo, no discreto, organiza o mundo por relações sintagmáticas e paradigmáticas, ou proximidade e semelhança. Já em 1945 um matemático estadunidense, Vannevar Bush, estudava essa aproximação entre o digital e a construção do pensamento humano. Esse estudo se alia, em avanços consideráveis, para o que chamamos de neuroplasticidade, e marcam indelevelmente nossa compreensão sobre como nós mesmos funcionamos física e mentalmente, nas conformações sinápticas que geram nosso modo de pensar e agir sobre o mundo.

O digital, ao se ordenar descontínuo, estabelece uma quebra lógica em relação ao mundo natural, este sim ordenado pelo contínuo. Essa quebra contrasta com a cultura humana até então, que mantinha a informação e o modo do pensamento em lógicas contínuas, forçando o cérebro a reconhecer o contínuo como natural. A escrita se construiu de modo linear, o conhecimento passou a ser estruturado na mesma lógica, que igualmente se vinculava ao tempo, contínuo e ordenadamente linear da história humana.

O digital, em uma visada diacrônica, se consolidou como experimentos em arte e em figuras de linguagem e pensamento, como os hiatos, flashbacks e zeugmas, além dos fluxos contínuos, até desembocarem na pujante estrutura dos hipertextos, construções multilineares de informações, que hoje dominam as redes, a vida e a cultura humana, em suas várias formas de manifestação.

Se essa mudança libertou o cérebro para organizar o mundo segundo a lógica digital, invertendo, de certo modo, a prática anterior, de organizar o pensamento segundo a lógica do mundo, do contínuo, do analógico. O resultado da mudança se assemelha a reinventar a condição humana, desde o modo como organizamos a informação, até os comportamentos individuais e sociais. A lógica contemporânea opera em modo acelerado, mas precisará vencer, ainda, algumas dificuldades, como a cultura baseada na lógica do mundo natural e a grande demanda existente, além do próprio mundo natural e suas emergências. Tudo isso levará tempo.

A cultura, atualmente, oscila entre o digital, que é emergente, e o analógico, sustentado pela tradição e pela experiência humanas. O digital enquanto modelo de cultura avança a olhos vistos, ainda que o analógico se inscreva como seguro e estável, presente em modelos de pensamento, de negócios, organizadores de informações e estruturadores de cidades e casas. O mundo natural reflete essa lógica. As pessoas ainda têm resistência ao novo modelo, justamente pelo alicerce que sustentou o humano até aqui, responsável também pela emergência do modelo digital. Longe da simplista definição de nativos e imigrantes digitais, estamos ainda nos primeiros passos da uma cultura digital, que certamente alterará empresas, universidades, cidades e a própria raça humana, no que diz respeito a sua cultura, entendida aqui em sua acepção ampla.

Se já organizamos a multiteca das redes em sistemas mais complexos e multilineares, ainda preservamos as bibliotecas físicas ordenadas por sistemas ineficientes, como a Classificação Decimal Universal (CDU) ou a Classificação Decimal de Dewey (CDD). Se avançamos em modelos de negócio que ultrapassam as barreiras políticas e geográficas, e mesmo da língua, ainda somos alijados de avanços por modelos contábeis, jurídicos e administrativos construídos em uma lógica linear e centralizadora, ainda afeita ao contexto medieval. Se avançamos em um ano o que avançamos em um ou dois séculos no passado,  ainda praticamos métodos comunicacionais e ideológicos dignos de passados remotos da história da humanidade.

A lógica digital se impõe de modo inquestionável, mas o humano e suas práticas, em cada povo ou nação,  escolhem o vencedor. Por agora, países como EUA, China, Alemanha e Japão parecem ter compreendido a mudança, ainda que cometam deslizes grandes. Outros países, contudo, preferem colocar em relevo sua história e tradição, mesmo sem proeminência, avanço ou solução mínima dos seus problemas sociais, permanecendo no passado, como um conto de ficção científica ou um estágio de fixação freudiano, que nem ele mesmo, Freud, saberia explicar - e que opera analogicamente.

Leia o artigo publicado.

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