A banalidade do mal
O polêmico conceito criado pela filósofa alemã judia Hannah Arendt, aluna preferida de Martin Heidegger, foi apresentado no livro Eichmann em Jerusalém. O livro, publicado originalmente em 1963, a partir dos artigos que publicara como correspondente na revista The New Yorker, discutia o julgamento de Adolf Eichmann, iniciado em 1961, em Jerusalém, e que resultou na pena de morte por enforcamento, ocorrida em 1962, nas proximidades de Tel Aviv. Arendt discutia a perspectiva do mal provocado por ninguém, ou por pessoas destituídas da capacidade do pensar, visto que ela não atribuiu o mal ao nazista julgado, mas via nele tão somente o burocrata zeloso, incapaz de pensar por si.
A banalidade do mal é, para a filósofa, a mediocridade do não pensar, e não exatamente o desejo ou a premeditação do mal, personificado e alinhado ao sujeito demente ou demoníaco. Como postura política e histórica, e não ontológica, a banalidade do mal se instala por encontrar o espaço institucional, criado pelo não pensar. Em Eichmann, Arendt via não alguém perverso ou doentio, sequer alguém antissemita ou raivoso, mas tão somente alguém que cumpre ordens, incapaz de pensar no que realmente fazia, mantendo o foco somente no cumprimento de ordens.
Diante de destratos e violências físicas e verbais a que testemunhamos, e que certamente alguns leitores protagonizam, cotidianamente, em redes sociais e pelos jornais, não há como negar que daríamos farto material para a discussão da filósofa, nesses momentos críticos da eleição presidencial brasileira. Ao extremismo não falta apenas alteridade - a capacidade de se colocar no lugar do outro -, mas falta o pensar. As posições políticas e históricas assumidas banalizam o bullying, a violência e a ação, sejam elas uma replicação de post, um compartilhamento de fake news ou a realização de comentários agressivos contra seus opositores políticos, que se sobrepõem a amizades, à família e a crenças religiosas.
Tais quais movimentos da manada, a horda faz fugir o pensamento, deixando o espaço necessário para que a banalização do mal se instale. Relatos de amizades desfeitas, grupos de família e de bairros em crise diante de posições políticas acirradas em que não há respeito, mas despeito, pelas posições contrárias, a proliferação do bullying, político, histórico, é farto material para a discussão central de Arendt.
Embora a mídia tecnológica seja, de fato, pós-massiva, a massa continua sendo uma perspectiva de manipulação, inclusive e principalmente por ações acríticas, motivadas por consenso institucional: os exemplos de violência parecem ser regra nas relações entre eleitores, tal qual entre torcedores. A massa incapaz de pensar age, acéfala, não enxergando o mal que comete, socialmente. Mas ressente-se, quando igualmente agredida, o que a impele a responder, com maior violência ainda. Cria-se o círculo vicioso da banalidade do mal.
Ainda que não se queira comparar os contextos utilizados pela filósofa e neste artigo, não há dúvida de que vivemos uma banalização da violência, por motivações políticas. Por sorte, eleições passam, e a maior parte dos eleitores esquece seu ardor de defesa, suas posições políticas inquebrantáveis, provando que a tese de Arendt tem sua aplicação: a mediocridade do não pensar não é ontológica, mas política é histórica.
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