Sobre os idiotas úteis
Tema: Sobre os idiotas úteis
Veículo: Diário da Manhã
Número: 11.442
Página: 20
Caderno: Opinião Pública
Data: 20/05/2019
Mais de um milhão de pessoas se manifestaram, no último dia 15 de maio, contra os cortes da educação, chamados pelo Governo Federal de contingenciamento. As manifestações havidas em todos os estados brasileiros e no Distrito Federal foram protagonizadas por professores e estudantes em sua maioria, apresentando, democraticamente, seu posicionamento contrário aos cortes realizados pelo Ministério da Educação, que também alcançam a educação básica.
Indagado sobre as manifestações, o presidente Jair Bolsonaro adjetivou os manifestantes de "idiotas úteis" e de "massa de manobra". Ora, o fato, em si, poderia causar estranhamento, visto tratarem-se de cidadãos, em livre e democrática demonstração do interesse público. Tais manifestações estão na base do exercício de cidadania, que não se limita ao voto, antes se estende na participação da governança da res publica, expressão latina que significa interesse público e que dá origem do termo República. Mas o caso não se esgota exatamente no estranhamento. Ao definir professores e estudantes, em sua maioria universitários, como idiotas úteis , o que fica evidente é a tratativa e a consideração que o Governo Federal tem com a área da Educação, em seu grau mais alto de formação, a formação superior.
Não bastassem os cortes que colocam não exatamente em risco as atividades das IFES - Instituições Federais de Ensino Superior -, mas as paralisam, como expuseram vários reitores, as declarações acintosas reverberam não apenas naqueles que estiveram nas ruas de todo o país, mas também naqueles que defendem a Educação como base da construção da cidadania. O argumento utilizado, de ações incompatíveis com a postura e produção acadêmicas, não faz ver a larga e densa produção de conhecimento que coloca o Brasil muito bem ranqueado na América Latina. Se não temos a mesma força produtiva e inovativa de países de primeiro mundo, certamente isso não se deve aos esforços de alunos e professores, mas a descomunal diferença de aporte financeiro para a área, tidas nesses países e não no Brasil. A Alemanha, por exemplo, acaba de anunciar o aporte de 160 bilhões de euros para pesquisas e universidades para os próximos dez anos. "Com isso estaremos garantindo a prosperidade de nosso país no longo prazo", afirmou a ministra alemã da Educação, Anja Karliczek. No Brasil, o ministro se volta contra a área que ele deveria representar, propondo não exatamente estratégias para melhorar a atuação das universidades e pesquisas brasileiras; ele faz exatamente o contrário disso, retirando as perspectivas de manutenção do pouco que existe.
Aliás, propostas parecem faltar na era da turbidez. Em mentes mais auspiciosas, seria bastante sensato apoiar pesquisas com finalidade aderentes aos planos governamentais. Em terreno árido de financiamento, a indução a pesquisas aplicadas geraria, por certo, atratividade, do mesmo modo que aportes de recursos para laboratórios de áreas estratégicas poderiam surtir resultados frutíferos em pouco tempo. Mas quando não se tem projeto, o desmonte e o distrato parecem ser opções seguras para gerar balbúrdia, sem que bússola alguma consiga apontar caminhos para um futuro que não as ruínas.
Outro argumento utilizado foi o de que governos anteriores deixaram o país em petição de miséria. Novamente o ato de culpar o outro parece ser suficiente para eximir o atual governo de cumprir o que deveria. Lembremos que o cidadão não quer culpados, quer soluções. Em terras goianas, o argumento de culpar governos anteriores também foi usado, como se isso bastasse para eliminar a responsabilidade do governo atual. Senhores governantes, talvez os senhores não saibam, mas as mudanças que os elegeram foram sinais claros dos eleitores de que eles buscam alternativas. Culpados eles já os sabem, a ponto de não os manterem no governo. Seus argumentos, nestes casos, são meras redundâncias do que as urnas já disseram. Os senhores foram eleitos para mudar o quadro que aí está, não para dizê-los existentes. Outra fala condenável é a de não assumir que o Estado tem contratados, não os governantes. Ao atribuir contas a governos passados, o governante deixa de ver que os servidores públicos não trabalham para seus senhorios, mas para a res publica, para o Estado.
As ofensas oficiais denigrem a cidadania e quem a exerce. Sensatez e respeito ao cidadão é o mínimo que deveríamos ter de nossos governantes, ainda que sejam notórias a falta de projeto, a falta de trato e a falta de educação, que sangra com cortes não apenas no orçamento, infelizmente. Os adjetivos dados aos manifestantes são tão inúteis quanto idiotas, além de desrespeitosos em relação ao espírito democrático e ao exercício da cidadania.