Entre a inteligência - capa

Entre a inteligência e a subserviência tecnológica

Tema: Entre a inteligência e a subserviência tecnológica.
Veículo: Diário da Manhã
Número: 10.825
Página: 23
Caderno: Opinião Pública
Data: 06/06/2017

 

Entre a inteligência e a subserviência tecnológica

 

Há algum tempo, temos notado o adjetivo inteligente ser usado para crianças e jovens que usam aparelhos tecnológicos, ao demonstrarem familiaridade com os vários serviços oferecidos e os não menos numerosos gadgets disponíveis no mercado. Aparentemente, a facilidade é tamanha que impressiona os adultos, que aprendem com menos desenvoltura e velocidade que crianças e adolescentes.

Observando tais aspectos, o escritor estadunidense Marc Prensky desenvolveu a teoria dos nativos e imigrantes digitais, estabelecendo como marco divisor das gerações o ano de 1980. Antes desse ano, temos os imigrantes digitais, aqueles que nasceram antes da revolução dos meios digitais. Os nascidos depois de 1980 teriam, segundo o autor, uma vivência já imersa na cultura digital, portanto considerados nativos digitais.

Já discutimos, em outro artigo, sobre o fato de a cultura nascer na pessoa e não exatamente o contrário. Posso estar imerso em uma cultura e não me deixar aculturar, do mesmo modo que posso me aculturar sem necessariamente estar imerso em uma cultura. Isso, por si, faz refletir sobre a teoria de Prensky. Mais ainda, se considerarmos que o processo de digitalização não ocorreu homogeneamente no mundo, existindo lugares, e muitos, cuja revolução digital ainda é uma teoria, podemos relativizar a vivência que parte das crianças do mundo tem em relação aos sistemas computacionais e a cultura digital.

Se, por outro lado, problematizarmos a questão da interatividade, considerando que em vários momentos as mídias sociais acabam por não apenas parametrizar as possibilidades interativas, mas efetivamente instruí-las, em uma perspectiva esvaziada de visada crítica, talvez tenhamos pensamentos mais densos sobre quem domina quem, se a tecnologia domina alguns usuários ou se é efetivamente o contrário.

O filósofo Vilém Flusser já chamava a atenção para a possibilidade de sermos meros operadores de máquinas, em seu livro Filosofia da Caixa Preta. O argumento é que os usuários das ferramentas aprendem, ou são treinados, a operar a máquina exatamente como se espera, sem qualquer lastro crítico. Em outros termos, seríamos novos pombos nas caixas de Skinner, o pai da psicologia comportamentalista. O comportamento do usuário não seria apenas controlado, mas absolutamente manipulado.

Ao observarmos alguns comportamentos de jovens e crianças, e mesmo adultos, que atendem aos chamados das mídias sociais, fazendo uso dos apps da moda, sem qualquer criticidade e pudor, somos levados a repensar o uso de inteligente para os operadores de apps, imersos em seus smartphones em todos os pontos da cidade, inclusive em casa.

De início, os recursos tecnológicos deveriam ser tidos como meios para agilizarem e proporcionarem soluções de comunicação e socialização. Mas é comum vermos um estado de torpor em que se encontram usuários de aplicativos, sendo conduzidos cada vez mais para uma dependência de conectividade, sem um lastro utilitário ou de realização pessoal. 

A tecnologia, base para a cultura contemporânea, é de tal ordem relevante que seria impensável mantermos nossa cultura sem ela. De elevadores a computadores, sistemas bancários a matrículas escolares, nossa vida é completamente envolvida, direta ou indiretamente, pelos modernos sistemas computacionais. Todavia, o uso mais doméstico e social, movido pelas TICs - tecnologias de informação e comunicação, carece ainda de densidade para alcançar a relevância merecedora do adjetivo inteligente.

Pensar a tecnologia ou a conectividade para resolver problemas sociais, comunitários ou mesmo individuais é uma perspectiva salutar e inteligente. Usar as redes sociais e demais mídias apenas como passatempo social, em uma perspectiva de ócio nada criativo, é atender a demanda de mercado por usuários que efetivamente não criam inteligência, são antes meros manipuladores de interfaces gráficas, sendo treinados para o consumo de informações de baixa ou nenhuma relevância.

No fim das contas, ser um usuário de mídias digitais não indica inteligência, per si. A inteligência da cultura digital está no modo como tais sistemas são usados, e como isso pode impactar uma cultura.

 

 

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