CAPA Os gritos e o silêncio das urbes e tribos

Os gritos e o silêncio das urbes e tribos

Tema: Os gritos e o silêncio das urbes e tribos

Veículo: Diário da Manhã

Número: 10.874

Página: 18

Caderno: Opinião Pública

Data: 24/07/2017

 

Os gritos e o silêncio das urbes e tribos

 

Causou estranheza a prisão do performer Maikon K, ocorrida em Brasília, em 15/07/2017, durante a apresentação performática DNA de DAN, de frente ao Museu Nacional da República, atividade que compunha o Festival SESC Palco Giratório. A estranheza não se limita ao cerceamento da expressão artística, sob a alegação de ofensa ao pudor - o que por si só mereceria ampla discussão. Ela se estende ao conceito próprio de pudor, e às formas de fazer emergir uma performance social, de vozes que caladas, gritam ou sussurram pelas cidades.

Literal e metaforicamente, a Polícia Militar do Distrito Federal rasgou a bolha do DNA de DAN, fazendo aflorar a pele da cultura, que seca presa ao corpo, impedindo que a pele sensória emerja. Por mais incrível que possa parecer, a PM-DF acabou participando de um afloramento artístico social, quando a intenção era suprimi-lo.

Há um outro mérito da performance, que não o silêncio buscado pela repressão: são os gritos nas redes sociais. Julgamentos e xingamentos de todos os lados, cores e timbres. São comentadores de todos os assuntos, mesmo sem entender sobre nenhum, são os ávidos colecionadores de likes, os provocadores de plantão e os ingênuos sobre Arte, em sua maioria. Seus desejos de gritar, não importando muito sobre o quê, apenas pelo desejo de impor seu pensamento, sua lógica, seu lugar de deus no mundo, são uma tônica que rivaliza com a dialogicidade, com a urbanidade e sociabilidade.

Brados de apoio à repressão, à descontextualização do ato artístico,  ao retorno ao lugar comum, à mediana mediocridade do mundo, em que o diapasão iguala e torna tudo a mesma coisa, toma a dimensão de um câncer social, corrompendo cruzes, credos, corpos e mentes, na demência de uma lógica vazia.

Li um internauta questionar o reconhecimento do artista pelo fato de ele, o internauta, nunca ter ouvido nada sobre ele, o artista. Como se ele, o internauta, fosse um interessado por arte. Talvez esse internauta não tenha lido ou ouvido nada também de Matisse, Braque, Pollock, Siron Franco ou Antonio Poteiro, e esse desconhecimento fosse o motivo da insignificância desses artistas, quando o que ocorre é o afloramento da prepotência e ignorância dele mesmo. Nem na matéria legal essa justificativa é validada, pelo contrário, é fato que a ignorância sobre a lei não desobriga a sua obediência. E a lei assegura, ou deveria assegurar, a livre expressão, a arte e os credos - ainda que seus agentes nem sempre cumpram seu dever. E a lei assegura, também, o direito à expressão do pensamento, por mais torpe ou ingênuo que seja.

O DNA de DAN, de Maikon K, ganhou a dimensão de performance social, com todos os elementos compostos pelo artista: a bolha, a secura de uma pele sintética morta, a pressão que ela exerce na pele sensória, a ativação de uma visada profunda e a singularidade da provocação da arte.

A tríade grega poética, estética e catarse é, novamente, movida pela arte: a poética como estratégia de linguagem; a estética como um programa de gosto; e a catarse como uma purificação pela expurgação.

Independentemente de achares e pareceres, de conhecedores ou desconhecedores da Arte, o fato é que a ação performática deflagrou uma possibilidade de colocar a Arte no centro de discussões sobre seu papel, seu lugar, seus pontos de vista, sua ontologia provocativa, questionadora e crítica.

Por mais lastimável que a opressão sofrida pelo performer seja, a tentativa de silenciar a Arte é, sempre, frustrada, porque em seu silêncio ela grita, e seu brado ressoa legítimo, numa catarse social que expurga a insensibilidade. A Arte é o ápice da invenção humana, sempre renovada, sempre simbólica, sempre atrelada com os mais elevados conceitos de humanidade, sensibilidade, sociabilidade e transcendência. Um viva para a Arte.

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